Se você gosta de uma lagosta, ou o crustáceo que for, saiba que se foi servido num restaurante brasileiro, a notícia a seguir lhe interessa. Foi publicado no mês passado um artigo na revista científica americana “PLoS One” em que pesquisadores da Rede Abrolhos anunciaram a descoberta do maior banco de rodolitos do mundo, no litoral entre o norte do Espírito Santo e a Bahia. Os rodolitos são muitas vezes confundidos com corais e se parecem com rochas, mas são algas que produzem calcário, matéria-prima que, uma vez na cadeia alimentar do oceano, vai formar a carapaça que dá forma a crustáceos, moluscos e inclusive corais. São 20 mil quilômetros quadrados de algas — equivalente quase a metade do estado do Rio — e a revelação já nasce com tom de alerta.
- Os recifes de corais são também, em parte, formados por rodolitos. São muito sensíveis ao nível de acidez da água do mar, que está mudando por causa da concentração de carbono na atmosfera absorvida pelo mar – explica o biofísico Gilberto Amado Filho, pesquisador do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico e um dos autores do artigo científico.
Claro que a importância de Abrolhos não se resume à contribuição que dá à riqueza da culinária regional. Se a Amazônia é uma região ainda pouco explorada cientificamente, a biodiversidade que as algas calcárias abrigam neste pedaço do Atlântico Sul também não está suficientemente estudada. Os pesquisadores da Rede Abrolhos, iniciativa do Sistema Nacional de Pesquisas em Biodiversidade e da Conservação Internacional, precisaram de dois anos para estudar o leito oceânico do Banco de Abrolhos, com sonares, mergulhos e submarinos operados por controle remoto. O mapeamento permitiu saber, por exemplo, que 5% de todo o calcário natural produzido no planeta vêm dos rodolitos de Abrolhos, que ocupam área equivalente à existente na famosa Grande Barreira de Corais, na Austrália.
- São mais de 25 milhões de toneladas de carbonato de cálcio (calcário) produzidas por ano na região de Abrolhos. O Brasil deveria dar prioridade à proteção, desde que feita com a devida base científica, e ao estudo permanente deste habitat marinho de inúmeras espécies – complementa Amado Filho.
Não bastasse a luta pela preservação e a manutenção da pesquisa, o subsolo marinho da região de Abrolhos fica bem perto das bacias petrolíferas mais produtivas do país. Antes que o endereço de 45 espécies ameaçadas sucumba ao poder do dinheiro, o diretor de Planejamento do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Bernardo Brito, garante que um acordo selado com a Agência Nacional do Petróleo protegeu Abrolhos de leilões de blocos de exploração.
Não se trata apenas de proteger os rodolitos. Outra descoberta registrada no artigo científico foi o mapeamento das “buracas”. Este é o nome dado a depressões no assoalho marinho cobertas por algas e repletas de populações de peixes e recifes de corais. Por se tratar de um local no fundo do mar com águas mais calmas, é o local ideal para a reprodução de peixes.
- A saúde das algas incrustantes evidencia a saúde do ecossistema marinho. Os rodolitos têm poros que servem de abrigo para outras espécies, como pequenos invertebrados. Suas formações contínuas são locais de trânsito de peixes. Pelo menos 25 mil pessoas que vivem nos municípios no litoral da região de Abrolhos dependem da preservação do ecossistema do qual exploram diretamente, como os pescadores artesanais – diz Rodrigo Moura, professor da UFRJ e co-autor do artigo.
Mas assim como os recifes de corais, a vida das algas calcárias, também chamadas de incrustantes, sofre ameaças que vão além das interferências locais, como a pressão extrativista e as mudanças no regime de sedimentação dos rios que efluem rumo à costa da região. O estudo mostra que se o oceano continuar a absorver gás carbônico na mesma escala, e a acidez da água do mar aumentar, os rodolitos, alguns com núcleos de mais de 8 mil anos de idade — como exemplares encontrados em Abrolhos — vão simplesmente se dissolver aos poucos.
A estimativa do estudo, que recebeu destaque no site da revista “Science“ na última semana, é que a destruição das algas calcárias em todo o mundo gere um ciclo vicioso. Neste ritmo de emissões de gás carbônico, os bancos de rodolitos devem parar de se desenvolver em 30 anos. Até 2100, a produção de calcário nos oceanos deve cair em 40%. Quanto mais ácido, menor a capacidade da água do mar em absorver gás carbônico. Como já é sabido, mais CO2 na atmosfera significa maior intensidade do efeito estufa na superfície terrestre. Mais que para o prato de lagosta, as algas incrustantes de nome esquisito têm importância também para o equilíbrio do clima global.
Ampliação de reserva nasce em polêmica
O governo federal, por meio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, quer entregar até a Rio+20, no mês que vem, o decreto presidencial que multiplica a área de preservação ambiental que existe hoje na região de Abrolhos, dos atuais 880 quilômetros quadrados para cerca 92.500 quilômetros quadrados, muito mais que o suficiente para cobrir as algas calcárias. Seria uma notícia perfeita, se cientistas que serviram de consultores do ICM-Bio no projeto não discordassem da demarcação final.
- Do jeito que está, temo que a proposta de preservação que o Instituto Chico Mendes está fazendo servirá apenas para fazer boa imagem durante a Rio+20. Não se consegue vigiar sequer o pedaço que já está em reserva, quanto mais uma do tamanho proposto – critica o biólogo Rodrigo Moura, um dos autores do estudo que mapeou o banco de rodolitos de Abrolhos, com apoio Conservação Internacional, entidade privada sem fins lucrativos, e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. – Um dos objetivos do parque deve ser a sustentabilidade da pesca. A literatura científica sobre áreas de conservação mostra que quando as coisas são feitas de cima para baixo, sem representatividade das partes envolvidas, não dão certo. Os pescadores podem servir de aliados na conservação e eles têm interesse nisso.
A crítica do biólogo tem companhia de colegas de pesquisa de Abrolhos. Sobre a ampliação da área do Parque Nacional Marinho de Abrolhos, por exemplo, onde é restrita qualquer atividade exploratória, inclusive a de pesca artesanal, o biólogo, professor do Departamento de Biologia Marinha da UFRJ, tem dois argumentos para leigos. O primeiro: como a reserva está instalada no meio do bloco, e o litoral está sob a influência da Corrente do Brasil — uma torrente de água salgada e quente que vem da Linha do Equador em direção ao Sul do Atlântico — a restrição seria inútil para proteger o que está ao Norte do bloco, já que a tendência é que as espécies sigam a corrente. E mais: o que obrigaria um peixe, que está a dezenas de quilômetros da área proibida para pescadores, a migrar até o endereço imaginário e ali prosperar? O ideal, de acordo com Moura e demais pesquisadores da Rede Abrolhos é, em vez de grandes áreas de restrição concentradas em um só ponto, instalar várias outras menores, com possibilidade de mudarem de lugar de acordo com a dinâmica da vida na região, tudo dentro do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental.
O diretor de Planejamento do instituto, ligado ao Ministério do Meio Ambiente, Bernardo Brito, defende a demarcação proposta. Até o fim de junho, quando ocorrerá a conferência Rio+20, serão feitas quatro reuniões com moradores das principais cidades com litoral no Banco de Abrolhos. Brito garante que a proposta a ser levada à consulta pública foi uma das que mais teve base científica:
- A iniciativa de ampliar a área protegida tem três anos, diversas reuniões com especialistas e uso de uma metodologia de trabalho que congregou vários fatores, como a preservação da biodiversidade. A proposta da área de Refúgio da Vida Silvestre (Revis), por exemplo, teve base em estudos que identificaram ali a maior concentração de baleias jubarte do Atlântico Sul. A pesca intensa, que causa impacto, não vai ocorrer mais.
Na conclusão de Brito, as áreas de restrição pesqueira servirão, inclusive, para que a atividade seja mantida. Na Revis não haverá restrição total, mas apenas entre os meses de junho e novembro, na temporada de reprodução, garante o diretor do Instituto Chico Mendes.
Na apresentação da proposta do governo a ser levada às consultas públicas, disponível na página do ICM-Bio na internet, o instituto informa que o documento tem base em estudo desenvolvido com cooperação técnica da Conservação Internacional. Para Moura, não há necessidade de criar a Revis para proteger as baleias.
- Em reuniões com integrantes da ICMBio, foi falado que haveria investimento de R$ 5 milhões só para a primeira etapa da criação da Revis, um gasto evitável. Só com este dinheiro o governo poderia contribuir para a preservação da baleia jubarte – julga Moura.